sábado, 31 de julho de 2010

Assédio Moral, Denúncia Anônima, Saber Ouvir

Ontem fiz uma palestra sobre o Assédio Moral no Serviço Público e falei em nome da Ouvidoria Geral do Estado da Bahia - OGE (confira aqui). Claro que, em represetando um órgão público, apresentei suas competências e ferramentas utilizadas no Sistema de Ouvidoria. Porém, por mais que pretendamos ser o órgão "in persona" ao falar, naturalmente, leva-se um pouco do que trazemos conosco, um pouco do nosso jeito de ser. E particularmente, vejo que foi isso que me chamou atenção ontem.

O problema central do assédio moral não se prende à sua prova, como quando pensamos juridicamente. O cerne da questão está em, antes, indentificá-lo. Quando a denúncia é feita perante a OGE e no assunto (lugar onde se coloca o teor da manifestação) a pessoa nada escreve, é porque nem sempre o sabe estar sendo alvo de assédio.

Num Encontro de Ouvidoria Judiciais no ano passado, levantei uma questão que gerou a polêmica do dia. O anonimato das pessoas que fazem denúncias perante as Ouvidorias. E o que os representantes de Ouvidorias Judiciais não conseguiam perceber é que, se em Direito tudo tem que ser "como manda o figurino", ou seja, como manda a lei, na vida real as coisas não são bem assim...

Lá, a preocupação era apenas se a denúncia iria virar processo. Mas nem sempre é isso que a pessoa quer. A Ouvidoria é espaço do Ouvir. E é isso mesmo que as pessoas querem na maioria das vezes: apenas serem ouvidas! Minha felicidade, pois, foi na palestra de ontem saber que as pessoas puderam sentir-se seguras - e concordarem, ao contrário de alguns juízes com quem debati no evento do ano passado - que o anonimato é mesmo um trunfo em se tratando de Ouvidoria e, em especial, quando o assunto (esteja ele assinalado ou não no campo próprio!) é assédio moral.

Não irei aqui reproduzir o texto da palestra de ontem, nem muito menos faço apologia ao anonimato, afinal os anos de ditadura que o país viveu são suficientes para revelarem o quão danosas são ações (todas, desde as batidas policiais até os processos judiciais) baseadas tão somente em denúncias anônimas. O medo já imperou demais. Mas ainda que a ditadura, que a escravidão, que muitas das terríveis realidades por que esse país passou tenham acabado, o medo ainda impera, por outras tantas atrocidades. O assédio moral, tão velho quanto o próprio trabalho é, particularmente, um bom motivo para que se acate em sede de Ouvidoria Pública a denúnica anônima.

Reproduzo abaixo o texto que li quando pedi para me pronunciar naquele encontro. E sem medo algum de mostrar, inanonimamente o publico agora:


I Encontro de Ouvidorias Judiciais Norte e Nordeste


Tivemos aqui em Salvador a oportunidade de receber, neste ano de 2009, a exposição da artista plástica francesa Sophie Calle. A simples leitura num jornal local do que seria a proposta da artista já foi o suficiente para que eu quisesse muito prestigiá-la o que, infelizmente, aconteceu já na última semana do evento. Na exposição, Sophie compartilha-nos da sua decepção amorosa, por meio de uma carta de rompimento que lhe foi enviada e que serviu de base para os diversos olhares que se propuseram a dissecá-la. E assim, uma cópia da carta é entregue a todos os visitantes e um caderno com as traduções em português para melhor compreensão da obra. Temos, então, o depoimento de sua mãe que lhe escreve outra carta, carinhosa e de apoio; temos uma pauta de música, o prisma de uma roqueira; um provável aspecto criminal, no olhar de uma delegada de polícia; a impaciência no depoimento de uma especialista da ONU em direitos da mulher, enfim, várias e paradoxais dimensões que se abrem a partir de um único e inicial ponto de vista, a do autor da carta.


E porque, sabemos, a analogia é também fonte da qual o Direito se serve, é que trago à baila algumas digressões.


O autor da carta nos é apresentado como “X” e sabemos de sua trajetória amorosa com a artista pelo que ele conta e, nas entrelinhas, pelo que ele não conta. E quem é X? Não sabemos. Não nos é dito. E o que isso nos interessa, aqui, particularmente? Ora, X não é nome, não tem identidade, não o conhecemos. No entanto, podemos perfeitamente interpretá-lo da forma como melhor pudermos fazer, dentro dos nossos papéis sociais e, assim, melhor traduzi-lo para, a despeito de não lhe darmos rosto, darmos-lhe voz. Nesse sentido, o olhar da curadora da exposição, de uma vidente, de uma sexóloga, de uma consultora de etiqueta, dentre os que já foram citados.


Nesse ínterim, é nitidamente identificada a primeira semelhança do que aqui bastante – mas não o bastante – discutimos acerca da manifestação anônima, ou da denúncia anônima, da delação apócrifa. Aqui a importância ou risco, de ouvir aquele que se expõe. Covardia ou medo? Honestidade ou acusação oportunista? Certo ou errado? Direito ou não?


O nosso Estado é de Direito, mas Estado de Direito tão somente incita à tirania, relembramos aqui também. E se o regime democrático é condição sine qua non para a admissão de nossa condição cidadã, a conscientização de cidadania é pressuposto para exercício da própria democracia. Permitindo, com isso, num círculo virtuoso ou mais, numa espiral em ascendente, o enlace do cidadão como ator social, ou melhor, o enlevo à categoria de ator político, posto que inserido, contextualmente, na sociedade.


Porque o indivíduo de que tratamos, o cliente, como alguns aqui o chamaram, o usuário, deve ser, sobretudo, para nós integrantes de Ouvidorias, o cidadão. Aquela pessoa que, apontando um sintoma de anomalia ou reconhecendo uma efetiva funcionalidade, traduz para esse sistema a leitura que ela faz dos serviços da instituição. As ouvidorias judiciais no seu peculiar, mais atentamente devem observar-se, posto que a lide já indica de per si um desatendimento natural de pretensões do cidadão, litigar em juízo já é um desgaste por si só. E às Ouvidorias da Administração cabem, indubitavelmente, mais que quaisquer outras, serem exemplos e referências de cidadania.


O cidadão pode se mostrar, pode se abrir, compartilhar o seu conhecimento, a sua informação ou mesmo, a sua desinformação. O que o cidadão não pode é ser compelido a ser o que ele não é, a se expor mais do que pode, a, de forma enviesada, ser visto mais do que ele se vê. Isso porque nem sempre aquele que se esconde, pretende denegrir. Não que não possa haver o caso. Mas o cidadão que é silente em sua identidade, não por isso tem de silenciar-se em seu incômodo ou em sua dor. E em que pese a existência do nosso Estado Democrático de Direito, é o cidadão ante o Estado jurisdicional, ante o Estado Administrativo que deve ser reconhecido em sua hipossuficiência e não numa paridade forjada de que "todo mundo é cidadão" e aí, em outra analogia, recordo-me de Wood Allen “Todos dizem eu te amo”. REconhecê-lo como hipossuficiente é conhecê-lo novamente ou, como nas diversas respostas endereçadas a Sophie (da nossa analogia inicial), é olhá-lo sob um novo e particular prisma.


Ouvidoria é, temos dito, exercício de democracia. Isto é sabido. Mas é sabido também o exercício da cidadania por todos? É sabido por todos os que não sabemos identificar, serem eles cidadãos?


Num dos pronunciamentos dirigidos a Sophie, temos a posição de uma adolescente. Em sua linguagem impetuosamente juvenil ela sentencia acerca da carta de rompimento do dito amado “X”. E exclama: “Ele se acha!”. Pois bem, aqui, em sede de Ouvidorias, nem a linguagem coloquial, nem a tradução literal da expressão. Na grande maioria das vezes, a realidade é a de que o cidadão, não se sabe, não se vê, porque se sente não visto. E porque não se olha, não se encontra.


Diferentemente de X, na acepção da adolescente, o cidadão que não se identifica é, em sua grandissíssima maioria, aquele que não se acha. Aquele que reclama um olhar atento, particular, apurado. E, por estar assim, perdido, é que nos cabe, nós, Ouvidorias, acolhê-los, achá-los, lê-los nas suas entrelinhas, sobremaneira.


Lembro-me, ainda e, para encerrar, de uma passagem do livro do escritor theco Franz Kafka no seu livro “O Processo”, quando se narra ao personagem Josef K. a história de um fiel cumpridor e servidor da lei que vigia e guarda a porta de entrada na lei, para cujo ingresso um camponês se dirige e lá espera sentado, dias, meses, anos. Ao final da vida, velho e cansado, o camponês lhe indaga: “Dize-me, se todos desejam entrar na lei, como se explica em tantos anos, ninguém, além de mim, tenha pretendido fazê-lo?” Vendo o homem, à beira da morte, ruge-lhe sobre o moribundo: “Ninguém, senão tu, podia entrar aqui pois esta entrada estava destinada apenas para ti. Agora eu me vou e a fecho.” A história deste sentinela, estrito cumpridor do seu dever – vigiar a entrada na lei - e do camponês desconhecedor de que aquela entrada era a sua, serve-nos também de inspiração sobre o nosso papel de Ouvidoria. Cabe-nos tão somente ouvir, vigiando a entrada correta para se obter o que se busca?


Assim, com a analogia buscada na arte – porque, afinal, de que nos serviria a arte se não nos facultasse um novo olhar da realidade? - fiquemos, pois, senão com uma ilação a mais, ao final deste Encontro, ao menos recebamo-nas como aquela mínima reflexão que, oportunamente, possamos nos consentir ao final de cada ano, quando nos permitimos quedarmos e ponderarmos, o que fizemos durante essa trajetória anual, no que nos acrescemos, no que crescemos e no que, intimamente, longe de qualquer holofote, no silêncio dos nossos pensamentos mais secretos, pudemos verdadeiramente nos orgulhar do que fizemos.


Obrigada.


Salvador, 04 de Dezembro de 2009.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Agora está chovendo mais que nunca

Dia de chuva. Não, noite de chuva! Intensa. Como a semana. Hoje faz exatamente uma semana em que um estalo foi disparado em nossas cabeças, a família toda ficou em alerta – e ainda estamos. Mas, sabemos, o alerta - qualquer alerta - para qual nós despertemos, não nos impede, ou melhor, não nos permite que paremos as nossas vidas.

E hoje, aniversário de uma de nós, assim como terça e sábado aniversários de outras duas, é mais um dos dias para nos lembrar que a vida continua, o tempo passa e mais uma idade se completa. E o que fazemos com aquele alerta martelando em nosso juízos? Ele continua, decerto. E é alerta porque não nos explica o certo. Nem o errado. Assim o é também porque não o entendemos. Se assim não fosse, não seria um alerta.

No entanto, desconfio que nem sempre, nem todos, ao depararmos com aquilo que não sabemos, sejamos capazes de despertar. Percebo aí que nem sempre o alerta toca. É aquele período em que os sabores das instigações, das divagações, das apurações tornam-se tão ácidos e corrosivos que é melhor quedar-se no deleite do doce sabor da ignorância silente, muda, cega; da ignorância que, por não nos tirar da zona de conforto, não nos compromete.


E então, agora a chuva caindo, depois de tantas emoções, depois de tanto tempo sem escrever num blog, depois de tantas lembranças vindo à tona, tantas surpresas, tantos desafios, tanto sentimento envolvido, eu aqui descansando, ouvindo o barulho da chuva, meditando a respeito da avalanche que nos tomou de sobressalto essa semana, peguei-me pensando o quão perigoso é essa zona do não-saber e, talvez, o quão perigoso também o é aqueloutra que a tudo quer decifrar.

E, como nada é por acaso, toca uma música que, por mais boba que pareça, muito me toca. Ouço Rhiana cantar “

now is rainning more than never

(agora que está chovendo mais do que nunca)

know that we’ll still have each other

(saiba que ainda teremos um ao outro)

you can stand under my umbrella

(você pode ficar sob meu guarda-chuva)

you can stand under my umbrella

(você pode ficar sob meu guarda-chuva)

A cantora, no contexto da música, refere-se à cumplicidade de um casal, em que ela devota amizade, lealdade e compromete-se com a acolhida do parceiro sempre que ele precisar: “you can stand under my umbrella”, onde podemos entender “umbrella” como o abrigo protetor e seguro com que o outro pode contar.

Outrora citei essa música no flog, mas na versão (a que uma amiga tem aversão) mal traduzida do inglês. E isso foi apenas porque a ouvi muito durante o São João ou porque me marcou bastante, por eu não eu ter, à época, um alguém assim como a personagem da música se dispõe a ser.


Hoje a interpretação, com certeza, foi outra. Não apenas por existir – ainda bem!- um alguém assim em minha vida amorosa, mas por entender a música, o guarda-chuva, como sendo a sombrinha, o grande, o imenso, o imprescindível e insubstituível abrigo em que sempre buscamos todos acolhermo-nos mutuamente: o nosso amor em família.

A sombrinha é, na verdade, uma “sombrona”, a grande sombra de uma árvore linda, frondosa e frutífera, com que sempre – e apesar de todas (e tantas!) discordâncias e diferenças – pudemos e podemos contar.

E então eu me lembrei do dono do restaurante em que almoço diariamente virar para mim (ao perceber provavelmente sinais de cansaço) e, simpático perguntar: “E você, moça, está feliz?” No que eu respondi e devolvi o sorriso: “Não. Não estou. Eu sou!”

E muito, apesar de todo e qualquer pesar. Nada é, pois, tão pesado quando se tem um bom guarda-chuva (e outras tantas coisas) para se acolher.

P.S. Texto escrito no dia do aniversário de Sanda, numa noite de inspiração chuvosa. E porque saí para  comemorar, terminou quase esquecido. Mas não sem tempo de postá-lo hoje que o tempo secou.